Uma avaliação do Tribunal de Contas da União (TCU) finalizada em setembro deste ano apontou falhas graves na formulação, implementação e avaliação em nove políticas públicas tocadas pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre elas o Bolsa Família, o Mais Médicos, e o Programa Aldir Blanc que se propõe a apoiar a artistas e à cultura.
O Relatório de Fiscalizações em Políticas e Programas de Governo (RePP) 2025 expõe 45 problemas de gestão, governança, operação, monitoramento, desenho e outros fatores que apontam para um quadro endêmico de ineficiência administrativa.
As nove políticas públicas fiscalizadas, que abrangem áreas de saúde, cultura, assistência social, previdência social, desenvolvimento regional, transportes, recursos hídricos e energia, receberam R$ 379,1 bilhões em 2024. Em muitos casos, ficou evidente para os técnicos que o governo opera praticamente no escuro, sem um diagnóstico preciso do problema nem objetivo claro na área do programa.
Segundo o TCU, mais da metade das políticas avaliadas sequer consegue identificar adequadamente o problema que deveria resolver. Apenas 44% apresentam diagnósticos completos sobre causas, efeitos e dimensões dos desafios enfrentados.
“Isso significa que o governo formula políticas sem saber exatamente o que está tentando solucionar — um erro que compromete todo o restante do processo”, alerta o cientista político Gustavo Alves.
A situação se agrava quando se observa que, em igualmente 44% das políticas, o governo escolheu caminhos sem comparar alternativas ou projetar cenários. A ausência dessa análise implica risco elevado de adoção de soluções ineficientes, custosas e incapazes de produzir resultados concretos. “Na prática, muitas políticas começam a existir já fadadas ao fracasso”, completa.
Outro ponto crítico apontado pelo TCU diz respeito à falta de clareza nos objetivos de cada programa: apenas 22% das políticas contam com metas claras, mensuráveis e factíveis. Isso significa que, em quase oito políticas a cada dez, não há precisão sobre o que o governo quer alcançar. “Sem isso, não é possível avaliar resultados, cobrar responsabilidades ou corrigir rumos”, avalia a doutora em Direito Público Clarisse Andrade.
Mais grave ainda é o fato de 100% das políticas analisadas apresentarem deficiência na definição de indicadores. Ou seja, sem métricas adequadas, o governo não consegue medir a eficiência, eficácia ou efetividade das suas ações. Some-se a isso a ausência de linhas de base em 77% das políticas e a inexistência de metas objetivas de entrega em 89% delas, e o quadro fica ainda mais crítico: o governo sequer sabe de onde partiu ou onde pretende chegar, segundo o TCU.
A corte de contas considera que as falhas de formulação provocam efeitos corrosivos: impedem avaliações precisas, dificultam comparações ao longo do tempo, reduzem a transparência, prejudicam o monitoramento e abrem brechas para desperdício de recursos públicos. “Em outras palavras, o Estado atua sem bússola, mapa ou instrumentos de navegação”, completa Andrade.
A Gazeta do Povo procurou todos os ministérios responsáveis pelos programas avaliados. Os que se manifestaram evitaram comentar os apontamentos feitos pela Corte de contas.
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Bolsa Família
O TCU apontou governança frágil que compromete a entrega de benefícios do Bolsa Família. O programa de transferência de renda apresentou três problemas achados pela auditoria, concentrados principalmente em governança e gestão e operação e monitoramento. Esses problemas, chamados no jargão do setor de “achados” podem ser falhas, riscos ou inconformidades.
Governança é o conjunto de regras, processos e mecanismos que orientam como uma organização é dirigida e controlada. A gestão é a execução prática dessas decisões, envolvendo planejamento, organização e administração das ações do dia a dia.
Segundo o TCU, essas falhas podem comprometer a correta execução dos pagamentos e a supervisão das condicionalidades, limitando o impacto social do programa. O Ministério do Desenvolvimento Social, responsável pelo programa, não se manifestou sobre os apontamentos do TCU.
Previdência Social Rural
O TCU apontou diagnóstico insuficiente e desenho incompleto em benefícios. O programa, que atende trabalhadores rurais, apresentou duas falhas, envolvendo diagnóstico do problema e desenho e institucionalização. Especialistas afirmam que a ausência de informações precisas sobre os beneficiários e regras claras reduzem a efetividade das políticas previdenciárias voltadas ao meio rural.
No contexto dos apontamentos do TCU sobre políticas públicas, o termo “desenho” refere-se à forma como a política é planejada e estruturada antes de sua implementação, englobando o planejamento estratégico que define objetivos e metas claras, o diagnóstico preciso do problema público a ser resolvido, a escolha dos instrumentos e ações necessários, a definição de indicadores de desempenho, a determinação de linhas de base e metas, e a estrutura institucional responsável pela execução.
Quando o TCU identifica falhas no desenho, indica que a política apresenta objetivos vagos ou irreais, ausência de indicadores adequados para medir resultados, falta de avaliação de alternativas de intervenção e organização estrutural inadequada, comprometendo tanto a implementação quanto a efetividade da política. A Previdência Social foi procurada pela reportagem, mas não se manifestou sobre os apontamentos.
Mais Médicos
Segundo o Tribunal de Contas da União, há lacunas em planejamento e alternativas. O programa teve cinco problemas achados pela auditoria, abrangendo desenho e institucionalização (2), diagnóstico do problema (1), análise de alternativas (1) e governança e gestão (1). A falta de avaliação de opções e planejamento detalhado, segundo o TCU, coloca em risco a cobertura médica adequada do programa e a alocação eficiente de profissionais.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que o Mais Médicos resolve um problema estrutural do país: “a falta de médicos em regiões vulneráveis”. “Nas cidades em que as prefeituras não conseguem atrair profissionais, o programa assegura cobertura médica à população. Com a expansão da cobertura e melhoria da assistência na atenção primária, o SUS consegue reduzir agravos de saúde e internações”.
Segundo a pasta, são 26,4 mil médicos atuando em 4,5 mil municípios e em todos os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) do país – “mais que o dobro dos profissionais em atividade em 2022”, em referência indireta ao último ano do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). “Estudos independentes apontam a relevância desta iniciativa na garantia de atendimento médico a 67 milhões de brasileiros”. A Saúde não comentou os apontamentos feitos pelo TCU.
Política Nacional Aldir Blanc
Entre as maiores e principais fragilidades apontadas no relatório do TCU está o programa ligado ao Ministério da Cultura que forneceu renda para artistas durante a pandemia de COVID-19 e continua se propondo a auxiliar no desenvolvimento da cultura no país. Foram 14 “achados” de auditoria, distribuídos em problemas com o desenho e institucionalização, governança e gestão, e operação e monitoramento. O TCU alerta que a complexidade do programa, somada à falta de planejamento e controles claros, aumenta os riscos de aplicação inadequada de recursos e limita a efetividade do incentivo cultural.
O Ministério da Cultura disse que seu compromisso é com o aprimoramento contínuo. “Desde a recriação do Ministério, temos trabalhado na consolidação da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura como uma política de Estado, adotando medidas concretas para endereçar as fragilidades identificadas, especialmente no que se refere ao monitoramento e à avaliação”, descreveu em nota.
O Ministério da Cultura disse ainda que tem atuado na implementação de “soluções robustas” para o acompanhamento, citando como exemplo a criação de uma plataforma que centraliza a gestão e operacionalização da política pelos entes federativos, “garantindo a concentração de dados e viabilizando um monitoramento orientado por evidências”.
A pasta também mencionou a Portaria do Ministério da Cultura nº 243/2025. Ela determina que, a partir do segundo ciclo da política, todos os atos de execução sejam registrados em tempo real na plataforma. “Essa medida representa um avanço substancial, permitindo a produção de dados e indicadores de forma contínua, o que fortalece a transparência e a capacidade de gestão”.
A pasta disse ainda que foi constituído um Comitê Gestor para elaborar diretrizes e soluções à implementação qualificada da política e que a arquitetura da plataforma foi desenhada para superar a deficiência no acompanhamento de indicadores de desempenho.
“Destaca-se que a implementação da política ainda está no seu segundo ano, mas já demonstra resultados significativos, com adesão de todos os estados brasileiros e de aproximadamente 99,9% dos municípios no ciclo 2. No fim de outubro, R$ 2,4 bi dos R$ 3 bi repassados, representando 94% do recurso, já haviam sido utilizados pelos entes federativos”.
O ministério afirmou ainda que o novo Plano Nacional de Cultura, enviado ao Congresso Nacional, também será um instrumento importante para a pactuação de metas e o aprimoramento dos mecanismos de avaliação para os próximos anos.
Rotas de Integração Nacional
O Rotas de Integração Nacional é um programa de desenvolvimento regional que visa fortalecer vocações de determinadas regiões do país. Para o TCU, a implementação do programa é problemática. Esta política apresentou seis achados de auditoria, com foco em governança e gestão, e desenho e institucionalização. Segundo auditores, a falta de mecanismos de supervisão robustos pode comprometer a execução de projetos estratégicos de infraestrutura e integração territorial. O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional não se manifestou sobre os apontamentos do TCU.
Em sua página oficial, o Ministério diz que as Rotas de Integração Nacional compõem uma rede de arranjos produtivos locais vinculados a cadeias consideradas estratégicas pelo governo federal e voltadas à inclusão produtiva e ao desenvolvimento sustentável nas áreas prioritárias da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR).
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, essas rotas buscam articular ações públicas e privadas em polos específicos, estimulando o compartilhamento de informações, a inovação e o aproveitamento de sinergias entre empreendimentos. “A proposta é fortalecer a competitividade e a sustentabilidade das atividades econômicas envolvidas, ampliando oportunidades e impulsionando o desenvolvimento regional”.
Plano Nacional de Manutenção Rodoviária
O Tribunal de Contas alertou que há falhas em desenho e operação. O programa que garante, ou deveria garantir, a manutenção da malha rodoviária federal teve três achados de auditoria, envolvendo desenho e institucionalização e operação e monitoramento. A deficiência na definição de responsabilidades e padrões de manutenção tem comprometido a segurança e a durabilidade das estradas. Indagado, o Ministério dos Transportes não se pronunciou.
Plano Setorial do Transporte Ferroviário
O programa teve problemas identificados, segundo o TCU, em todas as etapas. Com sete problemas, o segundo maior número do relatório, o plano ferroviário apresentou falhas em governança e gestão, diagnóstico do problema, desenho e institucionalização e análise de alternativas. A ausência de planejamento estratégico e monitoramento adequado pode reduzir a eficiência do transporte ferroviário e gerar desperdício de investimentos, segundo o órgão. O Ministério dos Transportes também não se manifestou sobre esses apontamentos do TCU.
Plano Nacional de Segurança Hídrica
Sob responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente, os problemas estão centralizados em governança e desenho. O programa apresentou dois achados de auditoria, um em desenho e institucionalização e outro em governança e gestão, indicando riscos na gestão de recursos hídricos e na prevenção de crises de abastecimento. O Ministério do Meio Ambiente foi procurado, mas também não respondeu aos questionamentos.
Política Nacional de Segurança de Barragens
De acordo com o TCU, entre os problemas identificados estão fiscalização e governança fragilizadas. O programa voltado à segurança de barragens de mineração apresentou três achados de auditoria, com desenho e institucionalização e governança e gestão. O TCU alerta que lacunas no controle e na fiscalização podem aumentar o risco de acidentes e danos socioambientais graves. O governo também não se pronunciou sobre esses apontamentos.
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Governança frágil e implementação improvisada
Não bastassem os problemas de origem, a fase de implementação das políticas públicas nos programas se mostrou igualmente fragilizada. Segundo o TCU, 78% das políticas do governo federal necessitam de estruturas básicas de gestão de riscos e controles internos. Isso significa que a maioria delas avança sem mecanismos para detectar desvios, prevenir falhas ou corrigir erros — o que pode ser interpretado como um convite para ineficiências e, em casos extremos, irregularidades.
Em mais da metade das políticas (55%), não há monitoramento adequado, ou ele é apenas parcialmente implementado. “Sem acompanhamento contínuo, fica inviável produzir evidências para embasar decisões, ajustar programas ou corrigir rumos antes que erros se agravem”, lembra o doutor em Direito e comentarista político Luiz Augusto Módolo.
A precariedade da gestão se reflete também no uso de recursos: 78% das políticas utilizam apenas parcialmente — e de forma insatisfatória — os insumos humanos, financeiros, materiais e orçamentários disponíveis. “O resultado é o desperdício potencial de tempo, dinheiro e esforço institucional, além da incapacidade de entregar serviços de forma eficiente”, reforça.
A situação é ainda mais preocupante quando se observa que somente 11% das políticas apresentam bom desempenho na eficiência operacional. Isso significa que, em quase 90% dos casos, o governo não consegue transformar recursos em resultados de forma adequada.
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Impacto que não pode ser medido
Quando se chega à análise dos resultados, o cenário não melhora. O TCU aponta que 89% das políticas nos programas analisados atingem apenas parcialmente seus objetivos de curto prazo, revelando que a entrega à sociedade é incompleta ou insuficiente.
Em mais da metade das políticas (56%), a eficácia e a efetividade são apenas parcialmente comprovadas. E, nas políticas restantes — que correspondem a 44% —, simplesmente não é possível avaliar se os objetivos foram alcançados porque faltam dados básicos. “O governo, nesse caso, sequer consegue dizer se as ações adotadas tiveram algum impacto real”, diz Gustavo Alves.
Essa lacuna não é fruto de acaso: de acordo com análise do TCU, decorre da ausência de indicadores, metas, linhas de base e atualizações sistemáticas, somada à falta de monitoramento. “Sem informações essenciais, o Estado opera às cegas, e a sociedade fica sem parâmetros objetivos para medir o retorno dos investimentos públicos”, avalia Clarisse Andrade.
“Na prática, o governo pode estar gastando bilhões sem saber — nem provar — se tais gastos geram benefícios concretos”, completa o economista Rui São Pedro.
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O retrato de um sistema que não aprende e não evolui
Para especialistas ouvidos pela reportagem, o relatório do TCU não deixa margens para interpretações otimistas. “Ele mostra um Estado que formula políticas sem diagnóstico, implementa sem controle, monitora sem método e avalia sem dados”, considera Gustavo Alves. Trata-se, segundo o cientista, um ciclo vicioso de ineficiência administrativa que impacta diretamente a vida dos cidadãos e compromete a qualidade dos serviços públicos.
O TCU fez 42 recomendações e uma determinação, cobrando melhorias em governança, definição de metas, criação de indicadores e estruturação de mecanismos de monitoramento e avaliação. “No entanto, o histórico da administração federal indica que muitas dessas recomendações são reincidentes — ou seja, problemas semelhantes já foram diagnosticados no passado, mas pouco mudou”, segue.
Para o analista, o documento expõe um governo que, independentemente de agendas políticas ou orientações ideológicas, demonstra incapacidade de planejar, executar e avaliar suas próprias ações. “Um Estado que não mede, não aprende e não corrige. E, sem essas capacidades, não é possível falar em políticas públicas eficazes, transparentes e orientadas para resultados”.
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@mesquitaalerta – Aqui, a informação nunca para.
